27.2.07

A bailarina e o boêmio

(Por Guilherme Ramos)

"Como fui feliz naquele fevereiro / pois tudo para mim era primeiro / primeira esperança / primeiro carnaval / primeiro amor criança..."



Do meu bloco – eu, boêmio – em meio ao turbilhão de notas e acordes, de máscaras e fantasias, vou cantando, dançando e até pareço mais uma voz na multidão. Mas sei que não. E é na(s) sacada(s) do frevo que te vejo. E desejo. O bloco vai passando e eu, fingindo me esbaldar, vou parando... para (melhor) te olhar.

Em meio ao frevo, à marchinha, ao desejo e à minha (ausência de) companhia, não sobra espaço para tristeza (ou não deveria). Por isso mesmo eu vejo, no álcool, no fumo e nos beijos (dos outros), puro desejo, pra “fantasiar” de alegria: do fica-fica ao solta-solta, só não vai quem não bebeu! Mas eu me pergunto: o que quero EU? Dançar e dançar e dançar. Somente isso. É difícil acreditar? Dançar e dançar e dançar... e não ter a vergonha desse infeliz que já ficou com 12... 13... 14... 15... Nossa! Ele não vai parar? E ele ainda grita "É carnaval, é pegação!!!" Isso é o que mais me irrita. Alguém já te falou em amar? Hunf! Como? Se ele só pensa em... birita.

E eu – tão boêmio – festejo. Apenas. Cigarro no bico, copo na mão, samba no pé (e no coração) e com sorriso nos lábios, danço sob as janelas e as varandas dos sobrados e apartamentos que demarcam o território da folia. Mas há uma janela especial. Mora, ali, minha alegria? Quem é aquela menina? Minha bailarina? Ela é tão leve, suspensa no ar, mas de olhar tão pesado, a me censurar... Não me escutaria uma só sílaba, se eu tentasse gritar. Quisera eu ser a bateria, que de rompante explodiria em frases sem parar: “Desce! Tum-tum-tum! Desce! Tum-tum-tum! Vem bailar! Vem bailar!” Mas... pra que sonhar? Se meu coração pudesse dizer o que senti ao te ver... Mas a banda passa. Cedo ou tarde, irá se afastar. Eu a terei de seguir, como um soldado, sem questionar. E você, nada fará. Que amorosa agonia: triangular-se-á eu, você e a folia.

E eu – ainda muito, muito boêmio – até penso em falar com você. Mas como, se sou apenas um homem na terra e você, um anjo do céu? Do alto, essa sua paz se contrapõe ao meu irresistível caos. Se opostos se atraem, por que não acontece comigo? Serei eu, doido varrido? Um cara perdido? Ou (aparente) pervertido, vagando (ébrio) sem parar? Pra você, (um) ser incapaz de amar. Minha alegria, seria sua tristeza e a sua estranheza, minha (pobre) alegoria.

Queria eu – apenas homem, quase nada boêmio – desfilar por entre seu mundo e, mais ainda: dizer o que sinto; sentir o que faço; fazer o que digo; dizer o que faço; fazer o que sinto; sentir o que digo; dizer o que digo; sentir o que sinto; fazer o que faço... por você (?) Como vou saber?

E o seu semblante, à janela, vislumbrando o bloco, na passarela, parece me apagar cada vez mais na multidão. Ficar assim, sendo um “mais um”, virando, então, homem comum, não quero não. E eu – tão coração de homem e alma de boêmio – sou muito mais. A “fantasia”, ora, pois, deixaria pra trás, se houvesse a chance de escalar seus muros e chegar a você, como um bom rapaz. E não seria difícil invadir seu palco, mais clássico, mais moderno, mais contemporâneo... Mais... Mas... aqui “jazz” um roqueiro sem par, que viveu (em mundos) “blues” e se rendeu às baladas saturnais. Eu não sou de lá e não fui pra ficar. Voltei pra sambar. Pra te encontrar. E a essa altura, a boemia eu largaria, se fosse pra sua “Vida” partilhar.

O bloco vai passando e as cinzas da quarta-feira, chegando. Dois mundos diferentes, tão presentes em nosso existir, vão se afastando. Partirão sem demora a partir de agora. Míseros instantes me restam antes que você, de sua varanda, perceba o quanto ansioso estou em revê-la. Num outro carnaval, talvez, ou num salão distante, na esperança de ao menos uma vez, sem confete, serpentina ou embriaguez – minha bailarina preferida – valsar ao seu lado, no seu tempo-espaço. Porque eu – boêmio – estarei sempre na passarela da vida, na rua, na avenida, no bloco a passar, olhando-a do alto de sua janela (quem sabe um dia) a me observar. Nem tudo na vida é fantasia; mas ao fim do carnaval, não se dispa da alegria, pois eu – um homem que sabe despir o boêmio – gostaria de me apresentar.

23.2.07

O boêmio e a bailarina

“Eu bebo, sem compromisso / com meu dinheiro / ninguém tem nada com isso / aonde houver garrafa / aonde houver barril / presente está a turma do funil!!”




Do meu apartamento - eu, bailarina - ouço vozes ecoando o hino que reconheço como sendo tão teu. Paro por um instante na esperança de distinguir a tua voz em meio a tantas outras, mas é inútil. É sempre assim: tua voz me parece tão muda(da) quando é apenas uma que grita com mais algumas. Corro, então, para a sacada e ponho-me a ver o teu bloco passar.

E lá vai samba, batuque, ritmo, disritmia, suor, cerveja, cigarro, fumaça, máscara, fantasia. E lá vêm bocas que só se encostam, enquanto dizem que se beijam. Bocas bem treinadas na arte do encostar-abrir-sugar-e-partir-para-outras. “E com mais essa boca, já são 12!!!!”, brada um sujeito que em sua confusa aritmética divide enquanto pensa que soma. E lá vem mãos que se esbarram, achando que se tocam; corpos que se chocam, achando que se sentem; gente que se solta dizendo que se pega. "É carnaval, é pegação!!!", brada novamente o empolgado sujeito que agora já encostou em 15 bocas, mas beijar mesmo que é bom, ainda nada.

E eu - tão bailarina - acompanho a tua festa, que se revela bem debaixo da minha janela. E te vejo em êxtase: copo na mão, samba nos pés, cigarro na boca a dividir espaço com o riso tão franco de moleque atrevido que és. Tens a alma nesse instante pesada de tão leve, ouvidos só no explodir da bateria, olhos em todas as direções, mas em nenhuma, coração sabe-se lá onde, provavelmente a bater no mesmo compasso do requebrado da passista de uma escola de samba qualquer. Enquanto a tua banda passa, não aplaudo, mas pego-me a sorrir pela tua alegria, tão na contramão da minha, mas que por ser tua é, sim, um pouco minha também.

E eu - ainda muito, muito bailarina - queria poder te dizer agora que não importa se és furacão e eu calmaria, pois é no tumulto da tua existência que eu encontro a paz da minha. E que hei de ter por ti um amor tão intenso, imenso, mesmo quando denso, que não adoeça se eu tão sóbria te encarar sempre tão ébrio e nem se entristeça se vc for para sempre sul e eu tão norte.

Queria eu - apenas mulher, quase nada bailarina - que essa pudesse ser uma declaração de amor tão forte, tão minha, tão tua, que capaz fosse de recolorir nossa existência, de redesenhar, de redescobrir. Mas oq escrevo agora não é introdução nem fim, é apenas o meio de uma coisa qualquer, que bem que poderia ter sido amor, mas foi mistério. Que bem que poderia ter sido presença, mas foi lacuna. Que bem que poderia ter sido, mas que mesmo nunca sendo, ainda é.

E a tua figura - a que para o bloco é presença e para mim lacuna - não passa sem ser notada. E mesmo eu daqui da janela, não fico despercebida. Vc malandro carioca, eu bailarina: ambos em pleno carnaval, mas sem nenhuma fantasia. E eu - tão coração de mulher e alma de bailarina - pela eternidade de um instante, penso em me atirar janela abaixo e ir tentar dançar a tua coreografia. E posso sim, aprender os teus passos e até passar a me expor ao sol sem proteção como se fosse mormaço, até me deixar ser vencida pelo teu, tão meu, cansaço. Pq posso, sim, sambar e me acabar e te abraçar e te encantar, mas em algum ponto do desfile também vou ter que parar, te deixar, me escutar e continuar a bailar no palco que escolhi para ser o meu lugar.

Portanto, que passe o bloco, que passe a farra e a euforia, que passe vc, sempre a desfilar na tua avenida, que não, não é a minha. E caia no samba, mas não deixe cair das mãos a tua alegoria. Fique por aí no teu espaço, na tua ginga, nos teus confetes e até mesmo nas tuas serpentinas. E samba - meu boêmio preferido - samba no teu ritmo, a tua história. Pq eu - bailarina - vou estar sempre na mesma janela, bailando, qd o teu bloco passar. E depois que ele se for eu - mulher que sabe despir a bailarina - ainda assim, continuarei a bailar.

15.2.07

Carlos, Carlos, Carlos

Conheci Carlos da forma mais inusitada do mundo: eu passava pela rua e ele me pediu uns trocados. Isso, trocados mesmo, qualquer moedinha servia. Olhei para aquele rapaz de pele azul, verde e amarela, repleto de bolinhas pretas e o achei o homem colorido mais interessante do mundo. “Dá uma força para o calouro, vai?” Disse ele, interrompendo a audácia da minha imaginação que já o alcançava inteiro, sem toda aquela tinta, sem toda aquela roupa, sem toda aquela... sem tudo, apenas todo. Todo meu. Incrível como a nossa imaginação é... todo meu, logo um desconhecido que eu sequer sabia se era todo alguma coisa, se era todo de si mesmo, se era todo de alguém. Depositei em suas mãos algumas moedas e um papel com o número do meu telefone. Mas não só. Depositei também todos os trocados de sonhos, esperança, confiança e fé no ser humano que eu ainda tinha. Não era muito, mas era tudo o que me restava após tantas falências decretadas e consentidas. E foi assim que começou o fim. Namoro, noivado, casamento, brigar, fazer as pazes, fazer dengo, fazer cena, fazer ciúmes, fazer amor, fazer besteira, fazer surpresa, fazer mais besteira, fazer e desfazer, fazer sentido, fazer certo, fazer errado, fazer valer a pena. Até o dia em que Carlos não quis mais fazer. Não pq deixou de me amar, não pq algo de grave tivesse acontecido. Carlos simplesmente amanheceu se questionando se queria mesmo estar ali e se foi. Desde então todos os dias amanhecem como aquele, mas eu não amanheço mais. Eu apenas caio junto com as tardes, para não mais me levantar. Como queria que Carlos estivesse aqui agora. Beijar a boca de Carlos. Brincar com os meus dedos no cabelo oleoso de Carlos. Ouvir novamente os lamentos de Carlos. Acreditar nas mentiras de Carlos. Rir das piadas sem graça de Carlos. Beber uns goles de lágrimas com Carlos. Ver Carlos dormir enquanto conto como foi o meu dia. Não dormir para cuidar da bebedeira de Carlos. Cuidar das feridas que Carlos abre. Beijar a boca seca de Carlos. Agüentar Carlos repetir a mesma rotina. Dizer para Carlos que ele é mais do que pensa ser. Fazer uma poesia linda que Carlos não entenda. Aturar as manias estranhas de Carlos. Massagear o ego e os pés calejados de Carlos. Explicar coisas simples que Carlos desconhece. Beijar a boca amarga de Carlos. Resolver os problemas de Carlos. Desvendar o silêncio de Carlos. Estender a mão para Carlos se levantar. Servir de muleta para Carlos se equilibrar. Tomar partido por Carlos. Beijar a boca imunda de Carlos. Viver Carlos.

O telefone toca. Do outro lado da linha, Carlos. Arrepende-se de ter ido embora, mas não sabe mais voltar. Carlos é assim, sempre esquece. Esquece o caminho, esquece o passado, esquece o que pensa, esquece o que é. Não posso recriminá-lo, já que por tantas vezes também esqueci, só lembrei de Carlos. Penso em servir de bússola mais uma vez para Carlos. Mas não. Deposito nas mãos do pedinte apenas moedas, dessa vez. É hora de viver, Carlos.

28.11.06

Olhar...

“O que você não pode consertar, você tem que encarar" (Annie Proulx).




Lembrar: se eu não desviar meus olhos, mal algum poderá me acontecer. Se eu não desviar...

23.11.06

Como se fosse

José andou como se fosse homem
E também parou como se apenas fosse
E coloriu o nada com seu fervor vermelho
E digeriu a vida em seu papel pequeno

José olhou como se fosse cego
E não mais tocou como se apenas fosse
E se deixou levar como se fosse ébrio
E se condoeu como se sóbrio fosse

José partiu como só parte o vento
E acenou como se tempo fosse
Depois voltou como quem nunca veio
Depois ficou como se não mais fosse

José que andou como se fosse homem
José que olhou como se fosse cego
José que partiu como só parte o vento
Olhou-se inteiro como quem não mais era
Jogou-se longe para que não mais fosse

José que tanto fez como se apenas fosse
José nunca foi, José foi-se.

20.11.06

Sonho

Jogo-me na cama. Não fecho os olhos, mas durmo.

Sonho.

Eu e você na noite escura. Ausência de cenário. Uma estrada perigosa. Não há estrelas, não há lua, nem mesmo o céu há. Espero durante horas o sinal ficar vermelho para que eu possa atravessar com segurança a avenida que me separa do futuro. Tenho pressa. Tenho sede. Tenho fome. E só. Porque ter nem sempre é necessário. Ainda mais quando o que mais se deseja é ser. Marco o ritmo dos meus pensamentos inquietantes com os pés. Mas permaneço com eles fincados no meio fio. Estabeleço pequena trégua ao compasso de idéias para considerar: meio fio. Por que meio? E me questiono o que me faz ficar ali parada num fio que nem sequer está inteiro. Desisto de esperar o avermelhar do sinal imprevisível. Decido arriscar. Mesmo sem saber direito o que arrisco. Desço do tal fio que não é todo, é apenas parte. Meu corpo põe-se a caminhar para o outro lado com a coragem controversa de quem não sabe o que faz. Eu apenas o acompanho. Você não. Já não sei mais onde você está. Fico no meio da estrada sozinha por um instante. No outro, você reaparece. E surge com feições que não são mais suas. Veloz, você vem em minha direção e me acerta. Veloz, você vem e me atropela. Joga o meu corpo inteiro no chão. Eu ainda pessoa, você agora caminhão.

Acordo. Penso que morri. Mas não. Foi só um sonho ruim. A realidade é outra. Procuro os teus braços e neles me salvo. Eu ainda amor, você também.

18.11.06

Acontece...

Acontece que hoje não há inspiração. Simples assim, como tudo deveria ser: não há. Debruço-me inteira sobre a folha de papel e não me vejo nela. Tenho na ponta da língua, na ponta dos dedos, na ponta da corda bamba em que me (des)equilibro muitas palavras. Umas belas, outras nem tanto. Umas feitas de rosas frescas e brancas, outras apenas cactos. Mas todas soltas demais para fazerem sentido algum. Todas com a terrível limitação de ser apenas o que são: palavras.

Acontece que não. Não há inspiração. Não há porque hoje não tenho nada que me faça querer olhar para fora de mim. Ou melhor, tenho tanto em cada um dos meus cantos e dos meus jarndins internos, que não encontro espaço para encaixar-me aqui. Há tanto em mim que já não me detenho a apenas uma forma de existir. Ou apenas: há tanto em mim que já não me detenho. Simples assim, como nunca deveria ter deixado de ser. Como nunca mais esquecerei que é.

Debruço-me, então, não mais sobre a folha, mas sobre mim mesma. E, assim como antes, debruço-me inteira. Penso em escrever. Mas não. Hoje, definitivamente, não. Hoje é o dia em que continuo a não ter inspiração. Tenho apenas urgência. Tenho apenas Vida. Tenho tudo: tenho a urgência da Vida. Para que mais?

15.11.06

Homenagem a Jorge


Jorge da Capadócia (Composição: Jorge Ben)

Jorge sentou praça
Na cavalaria
E eu estou feliz porque eu também
Sou da sua companhia
Eu estou vestida com as roupas
E as armas de Jorge
Para que meus inimigos tenham pés
E não me alcancem
Para que meus inimigos tenham mãos
E não me toquem
Para que meus inimigos tenham olhos
E não me vejam
E nem mesmo um pensamento
Eles possam ter para me fazerem mal
Porque eu estou vestida com as roupas
E as armas de Jorge

Salve Jorge
Salve Jorge
Salve Jorge

Armas de fogo
O meu corpo não alcançarão
Facas e espadas se quebrem
Sem o meu corpo tocar
Cordas e correntes arrebentem
Sem o meu corpo amarrar
Porque eu estou vestida com as roupas
E as armas de Jorge.

Salve Jorge... salve Jorge!

13.11.06

Rumo errado

Porque eu gosto de lutar
E você se faz de vítima

Porque eu gosto de seguir
E você finge que caminha

Porque eu gosto de verdades
E você se apóia em mentiras

Porque eu gosto de ter amigos
E você coleciona cúmplices

Porque eu gosto de sonhar
E você sempre delira

Porque eu gosto de jogar com as palavras
E você com as pessoas.

E quanto mais achar que pode ganhar, mais estará perdendo.

Perdendo tempo
Perdendo o rumo
Perdendo a chance

E finalmente: perdendo-se de si mesmo. Para nunca, nunca mais se encontrar.

8.11.06

Matemática irracional

Três amigos: dois homens, uma mulher.
Três formas de sentir.
Dois caminhos que se abrem.
Uma escolha.
Uma renúncia?

Três amigos divididos em dois casais.
Um de fachada: o homem e a mulher.
Um apaixonado: os dois homens.
Uma farsa.
Muitas mentiras.

Restou, portanto:

Três amizades abaladas.
Um rompimento.
Um casal de homens em crise.
Uma quase amiga do casal.

Porque mesmo quando tentou somar
Ela sempre soube que quem destoava era ela.
Ela sempre soube que quem sobrava era ela.
Mesmo quando optou por sentir, mas não acreditar.

7.11.06

Da série: palavras alheias, pensamentos meus

"Sentir é como descobrir, é saber como é sem nem ter tocado antes, é ter certeza do inconstante, é não racionalizar. Quando nada mais houver debaixo de seus pés, e quando não souber mais qual a diferença entre céu e terra, branco e preto, pesado e leve, assim ou assado, aí estará sentindo". (Caefher)


"A esperança é um exercício de vida. Os sonhos são seu instrumento". (Henri)


"Quem cultiva um jardim receberá flores um dia. Pode até demorar, mas isso não muda a natureza das coisas". (Pedro Ribeiro)


"Porque a vida, muitas vezes, é somente um grande verão com chuvas. Refiro-me, pois, a todas essas coisas incríveis e absurdamente simples, compreende? Essa simplicidade que choca de tão crua". (Andrea Marinho)

4.11.06

E assim foi. E assim...foi-se

Ele entrou, correu os olhos por todo o bar e os fixou em mim. Lançou-me um sorriso cínico e banal e - ainda sorrindo - ocupou a cadeira vazia ao meu lado.

_ Posso te pagar uma bebida?
_ Não, obrigada. Eu não bebo.
_ Por quê? Você tem problemas com o álcool?

Deixei a pergunta cretina sem resposta e ele, animadíssimo consigo mesmo, continuou:

_ Hoje vou te fazer quebrar a rotina: você vai beber.

Mal sabia ele que dar-lhe mais do que um segundo de atenção já significava não só quebrar a rotina, mas estraçalhá-la em mil pedaços desiguais.

Por que ele não vai embora? Por que eu não vou embora?

_ Eu preferia ficar sozinha, se você não se importar.
_ Eu me importo.

Parei por um instante. Fazia tempo que eu não ouvia aquilo. Eu- me- im-por-to, repeti devagarinho. Se eu ainda tivesse alguma emoção para oferecer, juro que quase me comoveria.

Deixei-o ficar, mesmo sabendo que eu não estava ali. Mesmo sabendo que ele também não estava. O garçom aproximou-se de nossa mesa vazia.

_ Veja: é a sua bebida.

Mal sabia ele que tantos são os que tentam matar a minha sede. E eu? Eu tenho apenas fome. Nem muita nem pouca, mas fome. Será que ninguém entende a diferença?

_ Experimenta. Vai ver que é bom.

Experimentei. Amargo e seco, como tanta gente que eu conheço. Desceu queimando a garganta. Era quente. Mas não, não era bom.

_ Gostou?

Balancei a cabeça em sinal de afirmação só para não decepcioná-lo. Mania infeliz de querer agradar a todo mundo.

_ O que você faz aqui?

Mentalmente, fiz coro à sua pergunta: o que faço aqui, o que faço aqui, o que faço?

_ Vim ver gente.
_ E está satisfeita com o que vê?

Olhei para o lado e...

_ Não. Mas a chuva que cai lá fora está inundando tudo, achei por bem me resguardar aqui.
_ Tem medo de chuva?
_ Nem sempre. Mas chuvas como a de hoje me fazem pensar que vou me molhar e nunca, nunca mais secar. Já teve essa impressão?

Claro que não. Ele não era do tipo que se permitia impressionar-se.

_ Deixa de bobagem, vem comigo.

Saímos do bar e fomos para a chuva. Não havia música, mas havia a vontade de dançar. Dançamos. Ou melhor, movimentamos os nossos corpos abraçados. Acho que ele não sabia dançar. Eu sabia, mas não com ele.

Em alguma nota musical que não tocava, ele invadiu com a língua o território quente - e nada neutro - da minha boca. Foi estranho, mas ainda assim eu quis mais. Aquilo era quase bom. Melhor do que a bebida amarga e seca, certamente.

Por um instante pensei em como seria invadir com a minha marca a história daquele homem. Mas não. Eu era apenas uma desconhecida. Ele, apenas um estranho.

A música que não tocava continou a não tocar. Nós que nunca a escutamos, continuamos a não escutar. E a noite acabou.

Antes ela do que eu.

31.10.06

Quem me viu, quem me vê?

Diante do espelho, olho e não me vejo. Penso em me desesperar, mas reconsidero. Desesperar-se às vezes dá tanto trabalho...
Dirijo-me à tela fria de um computador qualquer e digito:

Procura-se:

Vida. 24 anos, quase 25, quase uma eternidade. Blogueira por insistência. Pseudo-escritora por necessidade. Fácil de amolecer, difícil de quebrar. Sofre de rinite. Ou melhor, sempre sofre quando falta o ar. Ciumenta, mas controlada. Bonitinha sem ser ordinária. Fechada, mas nunca em si mesma. Insuportavelmente sincera. Em alguns momentos, insuportável apenas. Convence com idéias ao invés de comover com lágrimas. Acredita na lei de ação e reação. Gosta mesmo é de sol, mas vez por outra rende-se a mormaços. Só se molha na chuva se ela for de verão. Saliva, suor, amêndoas doces, tutti-frutti, paixão. Puramente intensidade. Quase sempre ansiedade. Pode ser extremamente incoerente, mas só se for em busca de coesão. Liberdade e libertária. Solitária e, talvez por isso mesmo, solidária. Intuição, instinto, telepatia. Gosta de perigo, embora negue. Ainda crê no ser humano. Mas há dias em que crê, também, que nem todos são humanos. Guia de labirintos. Faxineira emocional. Flerta com as palavras, mas só casa se for com as atitudes. Estressadinha e preocupada. Dança, ritmo, calor e trabalho. Vai do samba ao tango sem quebrar o salto. Não suporta quem diz que "se cair do chão não passa". Acredita mais no "você vai cair, mas sempre passa". Emoções complexas, pensamentos tortos, mas em constante evolução. Inteira em tudo o que faz. Moderna só no que lhe convém. Redondamente quadrada. Fiel, leal. Inevitavelmente real, mesmo no virtual. Garimpeira de amor. Não gosta de matemática, talvez porque ache secundário contabilizar. Pés descalços, boca molhada, mãos que buscam. Firme, mas maleável. Beijo, toque, pele e cheiro. Romântica sem ser pegajosa. Carente e, aí sim, levemente pegajosa. Não gosta de esperar. Perigosamente persuasiva. Acha tão importante saber ganhar dinheiro quanto saber gastar. Presença que envolve e pura ausência quando começa a sufocar. Teimosa, obstinada. Sonha sim, mas sempre por etapas. Especialista em (re)começos e (re)construções. Desafiadoramente persistente. Mais perguntas do que respostas. Mais garra do que exaustão. Mais luz do que sombras. Muitas Vidas em uma somente. Ou muito somente em muitas Vidas. Ou ainda: somente muita Vida.

Foi vista pela última vez vestida de noite de inverno - fria, nebulosa e sem estrelas - , mas ainda assim com o brilho do dia no olhar. Perdeu-se, em algum instante, nas entrelinhas de um discurso qualquer. Alguém viu por aí?



Volto novamente ao espelho. Tento me ver. Ainda não vejo, mas sinto. Sinto-me em cada um dos meus passos. Sinto-me toda. Sinto-me plena. Olhos têm a terrível limitação de só alcançar imagens. E em algum ponto do caminho eu optei por transcender a elas. Portanto, não busco mais ver nem ser vista. É hora de sentir, sem ver, sem ouvir, sem mais nada falar. Porque mesmo quando me julguei tão perdida, nunca deixei de ocupar o meu lugar.

25.10.06

No elevador

Ele estava atrás de mim na fila de espera e, juntos, entramos no elevador. Foi ali que tudo começou. Trocamos o primeiro olhar e naquele instante senti - como nunca havia sentido antes - o meu coração bater como quem saia do peito e ganhava o mundo. Mas não um mundo qualquer: o teu mundo, aquele que eu queria que também fosse meu. Envolvidos, caminhamos a passos rápidos em busca dos sonhos distantes que pareciam mais próximos. Ou será que os sonhos é que nos perseguiram? Confesso que nunca consegui identificar o tênue limite entre o tentar alcançar e o ser capturado. Mas isso não é relevante agora, talvez nunca o seja. O fato é que quando olhei para o lado não te vi. Enquanto eu estacionei no norte, os teus pés - não sei se por escolha ou hábito - continuaram a seguir para o sul. Por mais irônico que isso possa parecer, ainda consigo ouvir a tua voz embargada me pedindo para não ir, não se dando conta de que quem estava de partida não era eu, era você. E foi ali, naquele adeus fantasiado de até breve, que o meu coração parou de bater e começou a apanhar. Foi ali que ele percebeu que a única coisa - a única - que fizemos realmente juntos foi entrar naquele elevador. E agora? Como sair de lá?

18.10.06

Entre colorido e perfume

Hoje encontrei no fundo da gaveta pedaços da nossa história. Ela estava lá, escrita no papel colorido que comprei para enfeitar as nossas vidas. E ainda exalava o doce aroma da caneta perfumada de sonhos que usei para desenhar as melhores palavras que seus olhos atentos pudessem ler. Passei algum tempo deslumbrada com o colorido, com o perfume, com as palavras, com o reinventar de tantos capítulos, com o reinventar de nós mesmos, com o tanto que sentimos, mas não vivemos, com o tanto que vivemos, mas não sentimos. Reli cada pedaço de nós mesmos com o coração repleto da ternura que ficou mesmo quando todo o resto se foi. Em pensar que tudo foi arrastado por um vento quase forte, quase fraco, quase brisa, quase tempestade. Com um vento que eu vivi, mas que não soprei. Tentei lembrar o que nos fez deixar de fixar no solo o que tínhamos. Não lembrei. Será que você lembra? Pensei. E entre "serás" e "porquês", vi mais uma vez o vento chegar sorrateiro, tentando soprar o meu pensamento para longe. Não queria que fosse assim. Relutei. Tentei me segurar, com todas as minhas forças, mas não pude. Ao meu redor só vi promessas quebradas, palavras sem âncora, desculpas esfarrapadas e silêncio. Persistente que sou, procurei as raízes. Imaginei que nelas eu poderia me agarrar para depois replantar todo o resto. Mas elas também não estavam lá. Me vi, então, solta, completamente solta. Não tão livre, não tão leve, mas solta. E solta eu vou seguindo até romper a bolha em busca de mais ar.

Faz sentido!

Marina chorava inconsolável. A mãe, aflita, tenta entender o que se passa.

_ O que houve, querida? Por que razão choras tanto?
_ Ele fingiu, mãe. F-i-n-g-i-u.
_ Como assim? Conta-me o que há.
_ Foi assim: todo dia pela manhã eu gosto de despertá-lo com um belo desjejum na cama. Levanto bem cedo, preparo tudo e o acordo toda amorosa.
_ Belo gesto.
_ Sim, mas hoje descobri que todos os dias ele acorda antes de mim. Ele levanta, lê todo o jornal, depois volta para a cama e finge que dorme para que eu possa acordá-lo. A senhora acredita nisso, mamãe?!?!? Estou tão triste.

Dona Maura riu gostosamente.

_ Que mal há nisso? Não seja exagerada! Você ainda é tão jovem e inexperiente. Veja bem: ele apenas quis ser gentil. É um gesto tão pequeno, uma mentirinha boba, não se impressione com isso.
_ Sim, é pequeno. Aliás, é quase insignificante, eu bem sei. E é justamente isso que me entristece. Pense comigo: se por uma bobagem ele finge ao invés de ser franco, imagine quando estivermos enfrentando uma situação em que falar a verdade seja necessário (como sempre é!), mas extremamente difícil e constrangedor?

Na falta de algo melhor para dizer, Dona Maura calou-se. E a mim, que ainda levo a maior fé no poder da verdade, só resta silenciar também.

17.10.06

Série: palavras alheias, pensamentos meus

“Certa feita estive pensando sobre a diferença dos atos e palavras. Nos últimos dias voltei a carga em meus estudos e reli um “sem número” de recados amorosos não tão pretéritos assim. Recados belíssimos e ações não tão eivadas de amor assim. Percebi que escrever poesias e declarações de amor eterno é infinitamente mais fácil que abrir mão, ceder algo por alguém.
Concluí que os atos são as verdadeiras provas de amor, as palavras são apenas um instrumento. Concluí que não merecemos ser janelas de felicidade na vida de ninguém”. (Para alguns, anônimo. Para mim, apenas Henri)

15.10.06

Sobre o que nunca foi dito

Dentre todas as frases, há uma que nunca falei para ninguém. E não me refiro ao tão banalizado “eu te amo”, presente em tantas bocas que se beijam, mas não se bastam. Nem tampouco ao profético “você é o homem da minha vida”, reproduzido por aqueles que acreditam que é possível determinar o protagonista antes, sequer, de iniciar a história.

Refiro-me a tão sutil leveza de um singelo: cuida de mim. Frase esta intocada, que guardo longe de toda e qualquer mazela para fazer-se melodia apenas em ouvidos muito especiais.

Cuida de mim. Cuida de mim não porque eu não possa fazê-lo sozinha, mas porque eu não quero mais que seja assim. Não porque eu precise, mas porque eu desejo. Não porque eu seja frágil, mas porque em teus braços sou mais forte.

Cuida de mim não com a cobrança de um pedido, mas com a urgência de uma entrega. Pq deixar-se ser cuidada por alguém é se entregar.

13.10.06

Cansaço

"Tanto eu esperei para vencer/ E agora vejo que perder/ Nada mais é do que cansar". (Música Revelação - Elis Regina)

Tem dias em que já se acorda cansado...

Do trânsito que não dá trégua.
Do trabalho repetitivo.
De ver na estante os mesmos livros.
De ter mais dívidas do que crédito.
De percorrer o mesmo caminho.
De aceitar as mesmas desculpas.
De acreditar nas mesmas mentiras.
De esperar por algo que não vem.
De ser sutil quando se deveria chutar o balde.
De ver repetidos os mesmos atos.
De seguir a mesma rotina.
De bater na mesma tecla.
De brigar pelos mesmos motivos.
De não jogar e, mesmo assim, perder.
De ser assombrado por fantasmas conhecidos.
De falar e não ser entendido.
De ouvir e entender errado.
De calar e mesmo assim querer ser compreendido.
De correr e continuar a ser perseguido.
De amar e ser gostado.
De achar que detém e ser detido.
De se esconder e nunca ser encontrado.
De escrever e não ser lido.
De ter um nó na garganta tão bem atado.
De conjugar o verbo na pessoa errada.
De se iludir.
De fingir que não entende meias palavras.
De calar a palavra que ofende e se sentir engasgado.
De respeitar todas as leis.
De ver o mesmo velho filme na TV.
De tentar e dar errado.

Tem dias em que se acorda cansado. Mas amanhã isso passa. Sempre passa.

5.10.06

Não quero e algo mais

Barulho de água, é só o que ouço agora. Meus ouvidos descansam nesse som. Tão maltratados foram há pouco e, agora, apenas embalados pelo tilintar – quase irritante - de uma água que não chega a limpar. Ela apenas cai. Mas cai graciosamente, é bom que se diga: há muita arte em cair.

Sinto a cabeça quente e as mãos geladas. Cabeça tão quente como tudo o que me queima sem me explodir. Mãos tão geladas como tudo o que... Como tudo o quê? Como tudo.

Estou toda embaralhada em mil cartas que não me reconhecem. Tudo tão embaralhado como tantas partes de mim, que ora se perdem, ora se reencontram. Ora se cansam, ora me cansam.

Não quero mais, eu penso ( e a água continua a cair, sempre mais rápida do que eu). E eu continuo a pensar no que ainda não sei que penso:

Não. Quero. Mais.
Não quero. Mais!
Não, quero mais.
Não quero mais?
Não quero, mas...

E Chega. Sim, chega é uma boa palavra. É forte e definitiva, como eu deveria ter sido e não fui. Como eu deveria ter ... chega! Há muito charme em não mais. Não mais ser. Não mais ter. Não mais querer.

Porém, ainda não consigo tirar da cabeça quente e todo o resto frio, o chega que não era basta. O chega para perto. O chega para mim. O chega e me embala, que não consigo mais dormir. O chega que já foi um sim.

E nesse instante não ouço mais a água. Ela parou de jorrar. E agora quem jorra sou eu. Jorro por toda a parte. Jorro toda. Jorro o que parte.

Só ouço agora os barulhos da noite vazia. Rangidos. Tic Tac. Cachorro latindo. E a minha voz. Meus ouvidos doem. Minha garganta dói. Não quero mais ouvir, não quero mais falar. A noite está mais silenciosa agora - e eu já durmo, mesmo sem perceber, mesmo sem sonhar.

4.10.06

No mínimo, interessante

Afinidade é...

"Não ter necessidade de explicar o que está sentindo. É olhar e perceber. É mais calar do que falar, ou, quando é falar, jamais explicar: apenas afirmar". (Artur da Távola)

E já que é assim, me calo por aqui.

Sobre um dia comum

O dia amanheceu preguiçoso, mas eu não. Eu ainda sou energia e pura vida.

A tarde caiu, mas eu não. Eu ainda estou de pé. Às vezes mais equilibrada, às vezes um pouco menos. Mas de pé.

O dia anoiteceu, mas eu não. Eu ainda sou sol na sua estrada. Eu ainda estou aqui, mesmo sem falar nada. Eu ainda sou luz.

3.10.06

Um pouco de Clarice, um pouco de mim

“Eu, alquimista de mim mesmo. Sou uma mulher que se devora? Nao, é que vivo em eterna mutação, com novas adaptações a meu renovado viver e nunca chego ao fim de cada um dos meus modos de existir. Vivo de esboços não acabados e vacilantes. Mas equilibro-me como posso entre mim e eu, entre mim e os homens, entre mim e Deus”. (Clarice Lispector)

E assim, eu vou vivendo:

amanhecendo menina,
entardecendo bailarina,
anoitecendo mulher.

Amanhã, talvez, eu
amanheça entardecendo,
anoiteça amanhecendo
ou apenas entardeça,
mas tardando pouco,
para mais amanhecer.

25.9.06

Alguma coisa sobre a mentira

"... uma mentira que é meia-verdade é a mais negra das mentiras, pois uma mentira que é totalmente mentira pode ser identificada e confrontada diretamente, mas uma mentira que tem uma parte da verdade é muito mais difícil de ser combatida" (Alfred Lord Tennyson, poeta inglês, uma das maiores figuras da Era Vitoriana) . "


Mentira

Tal qual fétida fumaça de cigarro,
suas mentiras envolveram,
impregnaram-me
E mesmo longe, hoje,
ainda assim,
minhas mãos, cabelos,
minhas roupas
e o meu corpo, quase tão inteiro,
já não cheiram mais a mim.

20.9.06

Das rasuras que às vezes somos

Papel e caneta em mãos, esbocei um poema para você. Nele sobravam métricas, rimas e rasuras. Sim, rasuras. Daquelas bem exigentes que se sobrepõem às palavras tortas. Às palavras que nada dizem. Às palavras que mesmo nascidas em berço de poesia, não tocam. Entristeci-me perante o fracasso de escrever-te os mais lindos versos sobre o meu amor. E de tão triste chorei, molhando toda a folha de papel. Percebi, então, que ao chover sobre o que eu poderia dizer-te, palavras e rasuras se uniram em um único borrão.
E, assim, eu nos vi naquela folha. Nós às vezes palavras. Nós às vezes rasuras. Mas sempre unidos na poesia da vida em um único borrão.

16.9.06

Sobre uma poça que não secou

Entre mim e você havia uma poça. E ela tinha lá a sua beleza. Poças podem ser belas quando refletem a luz de olhos que brilham. O perigo é quando os olhos se apagam. E tudo fica escuro. E a poça vira rio. E as mãos já não se tocam. E os corpos já não se aquecem. E você tenta nadar, mas não é mais possível. E os sonhos - todos eles - já partiram. E embora tudo esteja cheio, só há por dentro um grande vazio. Um vazio não do que se foi, mas do que nunca veio. Um vazio não pelo que parte, mas por tudo o que fica no lugar. Por toda essa ruína de nós mesmos. Por tudo o que grita tão alto quando só resta o silêncio.
Entre mim e você havia uma poça. Só que no final das contas, não foi ela quem secou, mas todo o resto. E eu que tanto tentei não molhar os meus pés, sempre tão descalços, vou levando a vida assim: transbordando em mim mesma para não me afogar.

Nem que a gente morra

Não sou fã de Caetano, embora goste de algumas de suas músicas. Mas sabe quando alguém escreve antes de você o que poderia ter sido redigido pelas suas mãos, tamanha a verdade que te passa? Pois é.

"Não, nada irá nesse mundo/ apagar o desenho que temos aqui/ nem o maior dos seus erros/ meus erros, remorsos, o farão sumir/ vejo essas novas pessoas/ que nós engendramos em nós/".

E eu, que já me acostumei a morrer quase todo dia, para renascer no outro, não consigo parar de repetir:

"Nada, nem que a gente morra/ desmente o que agora/ chega à minha voz”.

12.9.06

Um dia, quem sabe...

Um dia eu quero ser livro. Não daqueles que qualquer um encontra na prateleira dos mais vendidos. Não, isso não. Eu quero a tão sutil beleza de um livro de páginas amareladas. Livro de páginas meio soltas. Livro com remendos feitos de durex. Esses livros, já tão gastos, não são egocêntricos. Carregam eles, além de suas histórias, as alheias. Carregam as experiências dos que o folhearam. Entendem da arte de ser mais do que palavras unidas, sem significado algum. E não há nada que, enquanto livro, eu queira mais do que carregar em minhas páginas não só letras, mas marcas, vivências, expressões.
Quero ser livro que faça rir. Mas, por favor, vez por outra transborde o que há em você sobre mim. Livros também são carentes, embora quase ninguém saiba. Quero ser livro que alegre, que faça pensar. Mas não só. Quero ser livro que faça sentir.
Quero ser livro de capa sóbria e simples. São tantos os que compram livros pelas capas. E eu não suportaria que me escolhessem justamente pelo que eu não sou. Porque livros não são capas, não são fontes, não são imagens. Livros não são sequer apenas as histórias que contam. Eles são sempre mais.
Um dia eu quero ser livro sim, isso é fato. E não tenho a pretensão de ser um livro belo. O que desejo é alcançar a imortalidade, tornando-me a cada releitura um belo livro, o que é muito diferente. Quero ter todo esse ar tão natural de mistério. Quero ter toda essa sutileza de às vezes não dizer tudo, mas ser compreendida. Porque nem sempre somos o que falamos. Quantos livros conheço que são exatamente aquilo que calam. Livros estão sempre disponíveis, mas sem ser oferecidos. Eles só mostram o seu valor para quem os procura. Eles nada impõem. E o mais fascinante: livros não são bons apenas quando são lidos. Mesmo que ninguém nunca os abra, mesmo que ninguém nunca vá além do nível em que só há palavras, ainda assim, eles serão sempre história, serão sempre magia, serão sempre encantamento. E mesmo que ninguém nada entenda do que está escrito em suas linhas, não importa, eles serão para sempre livros.

10.9.06

Das pessoas que gostariam de ter o que não dão

Afasta de mim as tuas queixas. Afasta de mim o teu sorriso de estátua de pedra. Estou farta de cobranças desmedidas, de falas corrompidas, das mãos quentes, mas gelo no coração. Olhe bem para mim e me diga: oq vês? Estou mais para otimismo desenfreado do que para balcão de reclamações. Estou mais para brisa em fim de tarde de verão, para abraço saudoso, para recomeços constantes. Estou e sou mais esperança do que lamentos. Portanto, não me venha chover as suas lágrimas que nunca deveriam ser. Não me venha molhar os meus castelos, que são de areia sim, mas estão mais de pé do que vc. E não pense que a tua boca não prova banquetes pq o mundo é cruel e a felicidade não existe. Para as migalhas que vc oferece cheguem a ser um pão inteiro vai levar algum tempo, talvez toda a tua tão apagada existência. E embora o papel de vítima te caia muito bem, não conte comigo para aplaudir a tua desgraça na primeira fila de um teatro da vida qualquer.
Por fim, afasta de mim as tuas histórias mortas e repare bem: não são as linhas que estão tortas e vc quem até tenta, mas não tem talento algum ao escrever.

3.9.06

Volúvel

Às vezes te amo com todas as minhas forças
Depois me sinto fraca e te amo menos
Depois me recupero e me sinto em paz

Às vezes tudo o que quero é ter vc por perto
Depois me sinto presa e não quero mais
Depois reconsidero e me ato em ti cada vez mais

Às vezes quero correr para bem longe
Depois estou tão distante que quero voltar
Depois me sinto cansada e ando bem devagar

Às vezes quero carregar o mundo nas costas
Depois me vejo pequena e quero parar
Depois que paro, não sei qd poderei recomeçar.

18.8.06

Mário Quintana já dizia que:

"A gente pensa uma coisa, acaba escrevendo outra e o leitor entende uma terceira coisa... e, enquanto se passa tudo isso, a coisa propriamente dita começa a desconfiar que não foi propriamente dita".

Daí eu pergunto: discutir a relação é mais ou menos por aí, não? Você pensa uma coisa. Diz outra. Entendem justamente o que vc não pensou. E o pior: não falou. E no final das contas, o questionamento que fica é: “de quem foi a idéia infeliz de abrir a boca?!?”

Vai ver o ideal mesmo é abrir só o coração. As palavras acabam acompanhando o que ele tem a dizer.

Se o outro coração não acompanhar?

Bom, nesses casos o ideal é não abrir mais a boca. Nem o coração. Abra a porta e convide-o a se retirar.

14.8.06

Ciclos

No meio da noite eu senti medo
E no meio do dia eu senti fome

O medo foi de dar errado
A fome, do que deu certo

Na noite fria eu me senti só
No dia quente eu me senti nua

A solidão foi pela tua falta
A nudez, de sentimentos

Ontem eu tive certezas
Hoje eu tenho perguntas

As certezas se desfazem
As perguntas não são feitas

E no meio da noite eu vou sentir medo
E qd o dia amanhecer, virá a fome.

O medo vai iniciar o ciclo
que se renova até que venha a fome.

11.8.06

Carta a um traidor

Sim, eu sei vc não é um traidor. Ng que trai o é, mesmo que provem o contrário, mesmo que as evidências gritem, que os fatos surjam, que as máscaras caiam, que as palavras firam, que o olhar de vidro diga, que o mundo de farsas caia. Mesmo que nada mais reste, que nada mais valha, que nada mais fique, que nada mais saia.
Não me culpo por ter te beijado com os meus olhos bem fechados, por ter sonhado com finais felizes, por te receber todas as vezes como se fosse a primeira, por ter te resgatado do seu mundo preto e branco, por te fazer acreditar ser mais interessante do que na verdade vc realmente é, por te mostrar que nem todas as pessoas são sujas, mesquinhas e falsas e que mesmo que pareça nem tudo está perdido.
Não me arrependo de ter te mostrado que no simples pode-se encontrar o belo, na lama pode-se encontrar saída, no nada pode-se encontrar a luz, no fim pode-se encontrar um novo caminho.
Eu te conduzi pelo labirinto de um amor que vc nunca soube valorizar com as suas atitudes tortas, seus gestos vazios, suas palavras frias, seu despreparo nato. E agora que te soltei vc vai se perder. Vai não pq eu assim o queira, mas pq vc não sabe para onde está indo, pq vc só toma rumos errados, pq vc cansa antes de concluir algo, pq vc até deve ter para onde voltar, mas não vai encontrar amor, apenas abrigo. Não vai encontrar calor, apenas mormaço. Não vai encontrar sentimentos sólidos, apenas fumaça. Não vai encontrar banquete, apenas migalhas. Não vai encontrar nada, apenas rastros.
A grande ironia disso tudo é pensar em quem foi mais enganado com isso tudo, quem viveu mais afogado em mentiras, já que todos os beijos intermináveis, todos os “eu te amo”, todos os momentos felizes, todas as demonstrações de afeto, todas as declarações, todos os sentimentos que te dei não eram seus. Dei tudo isso para a imagem que eu fazia de vc, para alguém que vc nunca foi, para um ser que nunca existiu, para alguém que vc criou, mas que não chega nem perto de ser vc. Esse aí que eu vejo em vc agora... esse eu nunca amei, nunca odiei, nunca senti nada pq não é merecedor de nenhuma emoção por menor que seja.
Agora só te resta descer do palco, o show acabou. E saiba que apesar de tudo eu não te culpo por ter me dado espinhos enquanto eu te dei flores: cada um dá aquilo que tem.

9.8.06

Ensaio de uma vida banal

Acordei naquela manhã de tempestade interior me sentindo incompleta. Seria bom se eu olhasse para mim mesma e me visse pela metade. Mas não. No chão daquele quarto escuro encontravam-se esparramados mais de mil pedaços do que um dia eu fui. No peito uma dor que chegava a parecer física e que falava de ausências emocionais. E que gritava falências sentimentais. Olhei para os lados e a cama tão vazia quanto o depositário em que guardo minhas esperanças parecia já cansada de tanto sentir o peso do meu corpo e das minhas repetidas lamentações.
_ Bom dia pedaços do que sobrou de mim. Murmurei baixinho. Mas por que baixinho? O tom da minha voz não faz a menor diferença agora.
Estar em posição vertical, um dia eu soube o que era isso. Brinquei com a minha própria dor.
As plantas reclamavam água, os meus gatos talvez nem sejam mais meus e a poeira acumulada nos livros nunca lidos quase conseguiam deixar o meu nariz tão irritado quanto os meus nervos, tão maltratados nos últimos anos de um relacionamento que nunca foi feliz, nem mesmo quando nos esforçávamos para parecer que éramos.
O telefone toca. Corro para atender e não... Não é ele, óbvio. Por que razão alguém que foi embora deixando apenas um bilhete me telefonaria? Por que razão alguém que nunca falou em amor me passaria um pouco do calor humano que eu precisava naquele momento? Oras, como sou tola, às vezes. Como sou tola quase sempre.
Do outro lado da linha a secretária do meu curso de artes tenta estabelecer um diálogo.
_ Boa tarde, senhora. O motivo desta ligação é que notamos que a sua ausência às aulas tem sido constante.
Ela notou a minha falta. Por um instante me comovi e confesso que cheguei a ensaiar um sorriso amarelo que nunca chegou a ser.
_ Constatamos que o pagamento da mensalidade venceu há 5 dias e ainda não foi efetuado.
Maldito mundo capitalista! Desanimei.
Ela continuou falando automaticamente. Sim, exatamente como quem parece ser paga para simular uma gravação. Em alguns momentos eu já nem sabia mais dizer se falava com uma máquina ou com um ser humano. Deus! Será que não sei mais distinguir tão sutil diferença?
_ Gostaríamos de lembrar que caso a senhora precise faltar mais um dia, mesmo com a mensalidade quitada o seu certificado de conclusão do curso não poderá ser emitido. Há algum motivo especial para tantas faltas seguidas, senhora?
_ Sim, há. Eu me quebrei em mil pedaços.
_ Como senhora?
_ Isso mesmo. Os pedaços são tantos que agora não consigo me juntar para sair desse quarto. Aliás, nem da cama eu consigo levantar.
_ Oh, céus!!!! A senhora precisa de um médico? Fraturou alguns ossos?
_ Esquece, querida. Em meia hora o que sobrou de mim estará aí.
Em duas horas eu, minhas olheiras, meu cabelo descolorido e meu corpo desengonçado conseguimos chegar ao local. Antes tarde do que... não, não vou continuar. Muito clichê e em minha vida embora haja vazio não há mais espaço para clichês. Antes tarde, apenas isso e ponto final.
_ Vc está atrasada. O professor me recepcionou.
_ Como sabe? É exatamente assim que me sinto: atrasada. Atrasada alguns anos. Atrasada algumas vidas até, considerando-se a visão daqueles que se dizem espiritualistas.
_ Não entendi. Sente-se a aula já começou faz tempo.
Sento-me e diante da tela em branco vejo apenas um ponto. Ele está lá, bem no meio do papel. Um ponto e nada mais. Imagino que aquele ponto tão solitário sou eu. E o meu primeiro ímpeto foi pintar todo um precipício abaixo dele e assisti-lo cair em queda livre até se confrontar com o solo áspero. Áspero, mas quente.
Trágico demais. Tento pensar em algo mais ameno, afinal de contas dizem que a vida é feita de amenidades. Por que não dar ao ponto feições de estrela e presentear-lhe com todo um Universo ao seu redor? Sim, era isso. Transformar aquele ponto em estrela é mais fácil do que transformar a minha frívola existência em algo menos banal.
Transformo aquele ponto em uma estrela cadente. Sim, cadente porque a idéia de cair parece ainda não ter saído da minha cabeça. E lá está ela: meio perdida, mas ainda assim estrela, brilhante, imponente, poderosa. Assim como eu. E com pincel em mãos a arte se inverte: não sou mais eu quem dou vida aquela tela: é ela quem parece me fazer viver.
Termino minha obra e a assino com ares de quem finge ser artista. Em algum momento alguém me olha como quem acredita. É, assim é a vida. E confesso que nessa altura do campeonato já nem sei mais se isso é bom ou ruim.
Levanto-me e vou embora antes da aula terminar. Não me importo mais com esses detalhes: começo e fim. O importante é o caminho entre um e outro.
Já em casa, começo a tirar a poeira daqueles livros nunca lidos. E em determinado momento vejo que se eu não me negasse a leitura de cada um deles, teria percebido que nenhum ponto final marca obrigatoriamente um fim. Traçar ou não uma nova linha é a parte que compete a nós. É hora de continuar a tirar a poeira, só que agora da minha memória.

8.8.06

Palavras e atitudes

_ Eu vou ter um romance.
_ Com quem?
_ Com as palavras.
_ Ah, eu sou mais as atitudes.
_ Mas palavras comovem.
_ Atitudes convencem.
_ Palavras são belas.
_ Atitudes são fortes.
_ Palavras tocam o coração.
_ Atitudes fazem a gente perceber pq é que ele bate.
_ Poxa, agora vc me deixou na dúvida. Sou fiel, só posso escolher uma.
_ A decisão é sua, só quis dar a minha opinião.
_ Vou ficar com as palavras, sei lidar melhor com elas.
_ Imaginei.
_ Pq?
_ Pq geralmente é assim mesmo: todo mundo sabe usar as palavras, uns mais, outros menos. Já a atitude não é do tipo que se use: vc tem ou não tem.

6.8.06

Bons homens e o bom velhinho: alguma coisa em comum?

_ Estou namorando!
_ Bacana. E como ele é?
_ Sério, fiel, gentil, educado, romântico, atencioso.
_ Só falta vc dizer que ele não curte futebol e que a mãe dele é o máximo.
_ Ah, amiga, então não falta mais nada! Está feliz por mim?
_ Talvez...
_ Como assim, talvez?!?
_ Desculpe, mas acho que homens assim são como o papai noel.
_ Não existem?
_ Existem, mas como o bom velhinho. Ou seja, eles aparecem na nossa vida pelo menos uma vez por ano. Vc abraça, beija, toca, escreve algumas cartas dizendo que o adora e fazendo mil pedidos que podem vir a ser realizados ou não. Vc até tira fotos ao lado dele para guardar de recordação. Mas embora esteja ali na sua frente, tudo é uma espécie de fantasia.
_ Fantasia?
_ Sim. No final das contas, assim como o papai noel que vemos no shopping, homens como o que vc descreveu tiram toda aquela roupagem e são apenas seres humanos normais, com todos os seus erros e acertos. Nada de fantasia, mas talvez a realidade não seja tão má.
_ Pode ser que vc tenha razão. Só espero que após o natal que estamos vivendo a magia não termine.
_ É possível. Se ele não fugir com as renas, é só lembrar que ng é perfeito o ano inteiro.

5.8.06

Poema título

Hoje a tua boca veio encontrar a minha
E as tuas mãos buscaram tocar as minhas
E o teu corpo só se aqueceu com o meu calor

Hoje eu mesmo vestida ao seu lado estive nua
E mesmo falando tanto estive tão muda
E embora atenta ao te escutar, só te senti

Hoje eu fui apenas eu e nada mais
E você foi apenas meu, de ninguém mais
E já não mais importa o caos de instantes atrás

Porque amar é preciso.
Porque viver é preciso.
Mas flutuar é fundamental.

Porque Viver é Preciso

Não, esse não é apenas o título desse blog recém criado e muito mal inaugurado. É muito mais. É a razão pela qual eu o criei. Para quem acha que esse pode vir a ser um espaço de encantamento, eu digo que não. É um espaço de desafogamento, apenas isso e nada mais. Porque da mesma forma que o mestre Fernando Pessoa, sinto que numa parte do dia “perco-me em mim mesma por ser labirinto”. E na outra parte também. E nessas linhas eu algumas vezes vou optar por me encontrar. Em outras não. Afinal de contas nem sempre é tão ruim não saber todas as respostas, perder a bússola, conviver com a incerteza se o domingo será de chuva ou de sol. Porque para alguns intuição, emoção e paixão representam perigo. Para mim? Absolutamente NÃO.

Breve explicação ou... para bom entendedor meia palavra basta!

"A Vida é tudo aquilo que acontece enquanto fazemos planos". O título desse blog surgiu dessa frase. E talvez a minha forma de levar a vida também.