15.2.07

Carlos, Carlos, Carlos

Conheci Carlos da forma mais inusitada do mundo: eu passava pela rua e ele me pediu uns trocados. Isso, trocados mesmo, qualquer moedinha servia. Olhei para aquele rapaz de pele azul, verde e amarela, repleto de bolinhas pretas e o achei o homem colorido mais interessante do mundo. “Dá uma força para o calouro, vai?” Disse ele, interrompendo a audácia da minha imaginação que já o alcançava inteiro, sem toda aquela tinta, sem toda aquela roupa, sem toda aquela... sem tudo, apenas todo. Todo meu. Incrível como a nossa imaginação é... todo meu, logo um desconhecido que eu sequer sabia se era todo alguma coisa, se era todo de si mesmo, se era todo de alguém. Depositei em suas mãos algumas moedas e um papel com o número do meu telefone. Mas não só. Depositei também todos os trocados de sonhos, esperança, confiança e fé no ser humano que eu ainda tinha. Não era muito, mas era tudo o que me restava após tantas falências decretadas e consentidas. E foi assim que começou o fim. Namoro, noivado, casamento, brigar, fazer as pazes, fazer dengo, fazer cena, fazer ciúmes, fazer amor, fazer besteira, fazer surpresa, fazer mais besteira, fazer e desfazer, fazer sentido, fazer certo, fazer errado, fazer valer a pena. Até o dia em que Carlos não quis mais fazer. Não pq deixou de me amar, não pq algo de grave tivesse acontecido. Carlos simplesmente amanheceu se questionando se queria mesmo estar ali e se foi. Desde então todos os dias amanhecem como aquele, mas eu não amanheço mais. Eu apenas caio junto com as tardes, para não mais me levantar. Como queria que Carlos estivesse aqui agora. Beijar a boca de Carlos. Brincar com os meus dedos no cabelo oleoso de Carlos. Ouvir novamente os lamentos de Carlos. Acreditar nas mentiras de Carlos. Rir das piadas sem graça de Carlos. Beber uns goles de lágrimas com Carlos. Ver Carlos dormir enquanto conto como foi o meu dia. Não dormir para cuidar da bebedeira de Carlos. Cuidar das feridas que Carlos abre. Beijar a boca seca de Carlos. Agüentar Carlos repetir a mesma rotina. Dizer para Carlos que ele é mais do que pensa ser. Fazer uma poesia linda que Carlos não entenda. Aturar as manias estranhas de Carlos. Massagear o ego e os pés calejados de Carlos. Explicar coisas simples que Carlos desconhece. Beijar a boca amarga de Carlos. Resolver os problemas de Carlos. Desvendar o silêncio de Carlos. Estender a mão para Carlos se levantar. Servir de muleta para Carlos se equilibrar. Tomar partido por Carlos. Beijar a boca imunda de Carlos. Viver Carlos.

O telefone toca. Do outro lado da linha, Carlos. Arrepende-se de ter ido embora, mas não sabe mais voltar. Carlos é assim, sempre esquece. Esquece o caminho, esquece o passado, esquece o que pensa, esquece o que é. Não posso recriminá-lo, já que por tantas vezes também esqueci, só lembrei de Carlos. Penso em servir de bússola mais uma vez para Carlos. Mas não. Deposito nas mãos do pedinte apenas moedas, dessa vez. É hora de viver, Carlos.

3 Comments:

Blogger Unknown said...

Oi.
Adorei o conto do Carlos. E do Carlos e do outro Carlos. Me fez lembrar de Beatles. Faz um tempo que não ouço.

Parece que Carlos se foi... "Let it be".

Melhor do que se ele te procurasse e gritasse: "Hey, Jude".

Porque, é lugar-comum, mas "All we need is love".

Só queremos que alguém diga "I wanna hold your hand".

e Outro dia me disseram: "She loves you". Então tá.

No final a gente acaba gritando "Help".

Porém o que realmente importa é "Twist and Shout".

Seu post me deu inspirou para postar! Obrigado :D

11:35 AM  
Blogger Guilherme said...

Eu CA(r)LO(s).

E, no meu silêncio, aplaudo. Pasmo. Conto? Ou realidade? A literatura tem dessas coisas. Faz-nos ir até onde (sequer) desejamos.

Eu fui... longe.

E penso se há tantos Carlos assim na Vida de tantas outras pessoas...

Um brinde, amiga!

(e quem bom que voltou a escrever - aqui - porque duvido que não o faça no papel...)

Bjos,

Seu admirador,

Gui.

6:20 PM  
Anonymous Carol Tradutora said...

Puxa, investimos tanto, e muitas vezes voltamos ao começo.
E quantos Carlos ainda? São tantos...

4:52 PM  

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