9.8.06

Ensaio de uma vida banal

Acordei naquela manhã de tempestade interior me sentindo incompleta. Seria bom se eu olhasse para mim mesma e me visse pela metade. Mas não. No chão daquele quarto escuro encontravam-se esparramados mais de mil pedaços do que um dia eu fui. No peito uma dor que chegava a parecer física e que falava de ausências emocionais. E que gritava falências sentimentais. Olhei para os lados e a cama tão vazia quanto o depositário em que guardo minhas esperanças parecia já cansada de tanto sentir o peso do meu corpo e das minhas repetidas lamentações.
_ Bom dia pedaços do que sobrou de mim. Murmurei baixinho. Mas por que baixinho? O tom da minha voz não faz a menor diferença agora.
Estar em posição vertical, um dia eu soube o que era isso. Brinquei com a minha própria dor.
As plantas reclamavam água, os meus gatos talvez nem sejam mais meus e a poeira acumulada nos livros nunca lidos quase conseguiam deixar o meu nariz tão irritado quanto os meus nervos, tão maltratados nos últimos anos de um relacionamento que nunca foi feliz, nem mesmo quando nos esforçávamos para parecer que éramos.
O telefone toca. Corro para atender e não... Não é ele, óbvio. Por que razão alguém que foi embora deixando apenas um bilhete me telefonaria? Por que razão alguém que nunca falou em amor me passaria um pouco do calor humano que eu precisava naquele momento? Oras, como sou tola, às vezes. Como sou tola quase sempre.
Do outro lado da linha a secretária do meu curso de artes tenta estabelecer um diálogo.
_ Boa tarde, senhora. O motivo desta ligação é que notamos que a sua ausência às aulas tem sido constante.
Ela notou a minha falta. Por um instante me comovi e confesso que cheguei a ensaiar um sorriso amarelo que nunca chegou a ser.
_ Constatamos que o pagamento da mensalidade venceu há 5 dias e ainda não foi efetuado.
Maldito mundo capitalista! Desanimei.
Ela continuou falando automaticamente. Sim, exatamente como quem parece ser paga para simular uma gravação. Em alguns momentos eu já nem sabia mais dizer se falava com uma máquina ou com um ser humano. Deus! Será que não sei mais distinguir tão sutil diferença?
_ Gostaríamos de lembrar que caso a senhora precise faltar mais um dia, mesmo com a mensalidade quitada o seu certificado de conclusão do curso não poderá ser emitido. Há algum motivo especial para tantas faltas seguidas, senhora?
_ Sim, há. Eu me quebrei em mil pedaços.
_ Como senhora?
_ Isso mesmo. Os pedaços são tantos que agora não consigo me juntar para sair desse quarto. Aliás, nem da cama eu consigo levantar.
_ Oh, céus!!!! A senhora precisa de um médico? Fraturou alguns ossos?
_ Esquece, querida. Em meia hora o que sobrou de mim estará aí.
Em duas horas eu, minhas olheiras, meu cabelo descolorido e meu corpo desengonçado conseguimos chegar ao local. Antes tarde do que... não, não vou continuar. Muito clichê e em minha vida embora haja vazio não há mais espaço para clichês. Antes tarde, apenas isso e ponto final.
_ Vc está atrasada. O professor me recepcionou.
_ Como sabe? É exatamente assim que me sinto: atrasada. Atrasada alguns anos. Atrasada algumas vidas até, considerando-se a visão daqueles que se dizem espiritualistas.
_ Não entendi. Sente-se a aula já começou faz tempo.
Sento-me e diante da tela em branco vejo apenas um ponto. Ele está lá, bem no meio do papel. Um ponto e nada mais. Imagino que aquele ponto tão solitário sou eu. E o meu primeiro ímpeto foi pintar todo um precipício abaixo dele e assisti-lo cair em queda livre até se confrontar com o solo áspero. Áspero, mas quente.
Trágico demais. Tento pensar em algo mais ameno, afinal de contas dizem que a vida é feita de amenidades. Por que não dar ao ponto feições de estrela e presentear-lhe com todo um Universo ao seu redor? Sim, era isso. Transformar aquele ponto em estrela é mais fácil do que transformar a minha frívola existência em algo menos banal.
Transformo aquele ponto em uma estrela cadente. Sim, cadente porque a idéia de cair parece ainda não ter saído da minha cabeça. E lá está ela: meio perdida, mas ainda assim estrela, brilhante, imponente, poderosa. Assim como eu. E com pincel em mãos a arte se inverte: não sou mais eu quem dou vida aquela tela: é ela quem parece me fazer viver.
Termino minha obra e a assino com ares de quem finge ser artista. Em algum momento alguém me olha como quem acredita. É, assim é a vida. E confesso que nessa altura do campeonato já nem sei mais se isso é bom ou ruim.
Levanto-me e vou embora antes da aula terminar. Não me importo mais com esses detalhes: começo e fim. O importante é o caminho entre um e outro.
Já em casa, começo a tirar a poeira daqueles livros nunca lidos. E em determinado momento vejo que se eu não me negasse a leitura de cada um deles, teria percebido que nenhum ponto final marca obrigatoriamente um fim. Traçar ou não uma nova linha é a parte que compete a nós. É hora de continuar a tirar a poeira, só que agora da minha memória.

3 Comments:

Anonymous Anônimo said...

OLá! Tudo bem?
Ás vezes quando nada mais faz sentido é que percebemos a importancia da vida, afinal, ela é sempre a última que nos resta. Deve ser porque a vida é efêmera, mas é dela que advém o absoluto, e considerando assim, tudo o mais passa a simples condição de matéria, só matéria.

"Antes tarde do que... não, não vou continuar. Muito clichê e em minha vida embora haja vazio não há mais espaço para clichês. Antes tarde, apenas isso e ponto final"

Você voltou ainda mais intensa, e particular. Adoro seu estilo, é suave e convincente. Muitos beijos!

eFe

10:12 PM  
Anonymous Anônimo said...

Tentei escrever algo, mas desisti.
Hj aconteceu algo que me deixou muito triste. Esse texto caiu com uma luva!

Ah! Seus textos são inigualáveis!
Talento é outra coisa!!! Ainda bem que eu posso vir aqui e me presentear com casa palavra, cada texto seu!

Beijos no coração

12:54 PM  
Anonymous Anônimo said...

To vendo que voltou em grande estilo... Nossa esses textos estão belos e encantadores, parabéns!!
Bessitossss!!!!

7:43 PM  

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