27.2.07

A bailarina e o boêmio

(Por Guilherme Ramos)

"Como fui feliz naquele fevereiro / pois tudo para mim era primeiro / primeira esperança / primeiro carnaval / primeiro amor criança..."



Do meu bloco – eu, boêmio – em meio ao turbilhão de notas e acordes, de máscaras e fantasias, vou cantando, dançando e até pareço mais uma voz na multidão. Mas sei que não. E é na(s) sacada(s) do frevo que te vejo. E desejo. O bloco vai passando e eu, fingindo me esbaldar, vou parando... para (melhor) te olhar.

Em meio ao frevo, à marchinha, ao desejo e à minha (ausência de) companhia, não sobra espaço para tristeza (ou não deveria). Por isso mesmo eu vejo, no álcool, no fumo e nos beijos (dos outros), puro desejo, pra “fantasiar” de alegria: do fica-fica ao solta-solta, só não vai quem não bebeu! Mas eu me pergunto: o que quero EU? Dançar e dançar e dançar. Somente isso. É difícil acreditar? Dançar e dançar e dançar... e não ter a vergonha desse infeliz que já ficou com 12... 13... 14... 15... Nossa! Ele não vai parar? E ele ainda grita "É carnaval, é pegação!!!" Isso é o que mais me irrita. Alguém já te falou em amar? Hunf! Como? Se ele só pensa em... birita.

E eu – tão boêmio – festejo. Apenas. Cigarro no bico, copo na mão, samba no pé (e no coração) e com sorriso nos lábios, danço sob as janelas e as varandas dos sobrados e apartamentos que demarcam o território da folia. Mas há uma janela especial. Mora, ali, minha alegria? Quem é aquela menina? Minha bailarina? Ela é tão leve, suspensa no ar, mas de olhar tão pesado, a me censurar... Não me escutaria uma só sílaba, se eu tentasse gritar. Quisera eu ser a bateria, que de rompante explodiria em frases sem parar: “Desce! Tum-tum-tum! Desce! Tum-tum-tum! Vem bailar! Vem bailar!” Mas... pra que sonhar? Se meu coração pudesse dizer o que senti ao te ver... Mas a banda passa. Cedo ou tarde, irá se afastar. Eu a terei de seguir, como um soldado, sem questionar. E você, nada fará. Que amorosa agonia: triangular-se-á eu, você e a folia.

E eu – ainda muito, muito boêmio – até penso em falar com você. Mas como, se sou apenas um homem na terra e você, um anjo do céu? Do alto, essa sua paz se contrapõe ao meu irresistível caos. Se opostos se atraem, por que não acontece comigo? Serei eu, doido varrido? Um cara perdido? Ou (aparente) pervertido, vagando (ébrio) sem parar? Pra você, (um) ser incapaz de amar. Minha alegria, seria sua tristeza e a sua estranheza, minha (pobre) alegoria.

Queria eu – apenas homem, quase nada boêmio – desfilar por entre seu mundo e, mais ainda: dizer o que sinto; sentir o que faço; fazer o que digo; dizer o que faço; fazer o que sinto; sentir o que digo; dizer o que digo; sentir o que sinto; fazer o que faço... por você (?) Como vou saber?

E o seu semblante, à janela, vislumbrando o bloco, na passarela, parece me apagar cada vez mais na multidão. Ficar assim, sendo um “mais um”, virando, então, homem comum, não quero não. E eu – tão coração de homem e alma de boêmio – sou muito mais. A “fantasia”, ora, pois, deixaria pra trás, se houvesse a chance de escalar seus muros e chegar a você, como um bom rapaz. E não seria difícil invadir seu palco, mais clássico, mais moderno, mais contemporâneo... Mais... Mas... aqui “jazz” um roqueiro sem par, que viveu (em mundos) “blues” e se rendeu às baladas saturnais. Eu não sou de lá e não fui pra ficar. Voltei pra sambar. Pra te encontrar. E a essa altura, a boemia eu largaria, se fosse pra sua “Vida” partilhar.

O bloco vai passando e as cinzas da quarta-feira, chegando. Dois mundos diferentes, tão presentes em nosso existir, vão se afastando. Partirão sem demora a partir de agora. Míseros instantes me restam antes que você, de sua varanda, perceba o quanto ansioso estou em revê-la. Num outro carnaval, talvez, ou num salão distante, na esperança de ao menos uma vez, sem confete, serpentina ou embriaguez – minha bailarina preferida – valsar ao seu lado, no seu tempo-espaço. Porque eu – boêmio – estarei sempre na passarela da vida, na rua, na avenida, no bloco a passar, olhando-a do alto de sua janela (quem sabe um dia) a me observar. Nem tudo na vida é fantasia; mas ao fim do carnaval, não se dispa da alegria, pois eu – um homem que sabe despir o boêmio – gostaria de me apresentar.

23.2.07

O boêmio e a bailarina

“Eu bebo, sem compromisso / com meu dinheiro / ninguém tem nada com isso / aonde houver garrafa / aonde houver barril / presente está a turma do funil!!”




Do meu apartamento - eu, bailarina - ouço vozes ecoando o hino que reconheço como sendo tão teu. Paro por um instante na esperança de distinguir a tua voz em meio a tantas outras, mas é inútil. É sempre assim: tua voz me parece tão muda(da) quando é apenas uma que grita com mais algumas. Corro, então, para a sacada e ponho-me a ver o teu bloco passar.

E lá vai samba, batuque, ritmo, disritmia, suor, cerveja, cigarro, fumaça, máscara, fantasia. E lá vêm bocas que só se encostam, enquanto dizem que se beijam. Bocas bem treinadas na arte do encostar-abrir-sugar-e-partir-para-outras. “E com mais essa boca, já são 12!!!!”, brada um sujeito que em sua confusa aritmética divide enquanto pensa que soma. E lá vem mãos que se esbarram, achando que se tocam; corpos que se chocam, achando que se sentem; gente que se solta dizendo que se pega. "É carnaval, é pegação!!!", brada novamente o empolgado sujeito que agora já encostou em 15 bocas, mas beijar mesmo que é bom, ainda nada.

E eu - tão bailarina - acompanho a tua festa, que se revela bem debaixo da minha janela. E te vejo em êxtase: copo na mão, samba nos pés, cigarro na boca a dividir espaço com o riso tão franco de moleque atrevido que és. Tens a alma nesse instante pesada de tão leve, ouvidos só no explodir da bateria, olhos em todas as direções, mas em nenhuma, coração sabe-se lá onde, provavelmente a bater no mesmo compasso do requebrado da passista de uma escola de samba qualquer. Enquanto a tua banda passa, não aplaudo, mas pego-me a sorrir pela tua alegria, tão na contramão da minha, mas que por ser tua é, sim, um pouco minha também.

E eu - ainda muito, muito bailarina - queria poder te dizer agora que não importa se és furacão e eu calmaria, pois é no tumulto da tua existência que eu encontro a paz da minha. E que hei de ter por ti um amor tão intenso, imenso, mesmo quando denso, que não adoeça se eu tão sóbria te encarar sempre tão ébrio e nem se entristeça se vc for para sempre sul e eu tão norte.

Queria eu - apenas mulher, quase nada bailarina - que essa pudesse ser uma declaração de amor tão forte, tão minha, tão tua, que capaz fosse de recolorir nossa existência, de redesenhar, de redescobrir. Mas oq escrevo agora não é introdução nem fim, é apenas o meio de uma coisa qualquer, que bem que poderia ter sido amor, mas foi mistério. Que bem que poderia ter sido presença, mas foi lacuna. Que bem que poderia ter sido, mas que mesmo nunca sendo, ainda é.

E a tua figura - a que para o bloco é presença e para mim lacuna - não passa sem ser notada. E mesmo eu daqui da janela, não fico despercebida. Vc malandro carioca, eu bailarina: ambos em pleno carnaval, mas sem nenhuma fantasia. E eu - tão coração de mulher e alma de bailarina - pela eternidade de um instante, penso em me atirar janela abaixo e ir tentar dançar a tua coreografia. E posso sim, aprender os teus passos e até passar a me expor ao sol sem proteção como se fosse mormaço, até me deixar ser vencida pelo teu, tão meu, cansaço. Pq posso, sim, sambar e me acabar e te abraçar e te encantar, mas em algum ponto do desfile também vou ter que parar, te deixar, me escutar e continuar a bailar no palco que escolhi para ser o meu lugar.

Portanto, que passe o bloco, que passe a farra e a euforia, que passe vc, sempre a desfilar na tua avenida, que não, não é a minha. E caia no samba, mas não deixe cair das mãos a tua alegoria. Fique por aí no teu espaço, na tua ginga, nos teus confetes e até mesmo nas tuas serpentinas. E samba - meu boêmio preferido - samba no teu ritmo, a tua história. Pq eu - bailarina - vou estar sempre na mesma janela, bailando, qd o teu bloco passar. E depois que ele se for eu - mulher que sabe despir a bailarina - ainda assim, continuarei a bailar.

15.2.07

Carlos, Carlos, Carlos

Conheci Carlos da forma mais inusitada do mundo: eu passava pela rua e ele me pediu uns trocados. Isso, trocados mesmo, qualquer moedinha servia. Olhei para aquele rapaz de pele azul, verde e amarela, repleto de bolinhas pretas e o achei o homem colorido mais interessante do mundo. “Dá uma força para o calouro, vai?” Disse ele, interrompendo a audácia da minha imaginação que já o alcançava inteiro, sem toda aquela tinta, sem toda aquela roupa, sem toda aquela... sem tudo, apenas todo. Todo meu. Incrível como a nossa imaginação é... todo meu, logo um desconhecido que eu sequer sabia se era todo alguma coisa, se era todo de si mesmo, se era todo de alguém. Depositei em suas mãos algumas moedas e um papel com o número do meu telefone. Mas não só. Depositei também todos os trocados de sonhos, esperança, confiança e fé no ser humano que eu ainda tinha. Não era muito, mas era tudo o que me restava após tantas falências decretadas e consentidas. E foi assim que começou o fim. Namoro, noivado, casamento, brigar, fazer as pazes, fazer dengo, fazer cena, fazer ciúmes, fazer amor, fazer besteira, fazer surpresa, fazer mais besteira, fazer e desfazer, fazer sentido, fazer certo, fazer errado, fazer valer a pena. Até o dia em que Carlos não quis mais fazer. Não pq deixou de me amar, não pq algo de grave tivesse acontecido. Carlos simplesmente amanheceu se questionando se queria mesmo estar ali e se foi. Desde então todos os dias amanhecem como aquele, mas eu não amanheço mais. Eu apenas caio junto com as tardes, para não mais me levantar. Como queria que Carlos estivesse aqui agora. Beijar a boca de Carlos. Brincar com os meus dedos no cabelo oleoso de Carlos. Ouvir novamente os lamentos de Carlos. Acreditar nas mentiras de Carlos. Rir das piadas sem graça de Carlos. Beber uns goles de lágrimas com Carlos. Ver Carlos dormir enquanto conto como foi o meu dia. Não dormir para cuidar da bebedeira de Carlos. Cuidar das feridas que Carlos abre. Beijar a boca seca de Carlos. Agüentar Carlos repetir a mesma rotina. Dizer para Carlos que ele é mais do que pensa ser. Fazer uma poesia linda que Carlos não entenda. Aturar as manias estranhas de Carlos. Massagear o ego e os pés calejados de Carlos. Explicar coisas simples que Carlos desconhece. Beijar a boca amarga de Carlos. Resolver os problemas de Carlos. Desvendar o silêncio de Carlos. Estender a mão para Carlos se levantar. Servir de muleta para Carlos se equilibrar. Tomar partido por Carlos. Beijar a boca imunda de Carlos. Viver Carlos.

O telefone toca. Do outro lado da linha, Carlos. Arrepende-se de ter ido embora, mas não sabe mais voltar. Carlos é assim, sempre esquece. Esquece o caminho, esquece o passado, esquece o que pensa, esquece o que é. Não posso recriminá-lo, já que por tantas vezes também esqueci, só lembrei de Carlos. Penso em servir de bússola mais uma vez para Carlos. Mas não. Deposito nas mãos do pedinte apenas moedas, dessa vez. É hora de viver, Carlos.