28.11.06

Olhar...

“O que você não pode consertar, você tem que encarar" (Annie Proulx).




Lembrar: se eu não desviar meus olhos, mal algum poderá me acontecer. Se eu não desviar...

23.11.06

Como se fosse

José andou como se fosse homem
E também parou como se apenas fosse
E coloriu o nada com seu fervor vermelho
E digeriu a vida em seu papel pequeno

José olhou como se fosse cego
E não mais tocou como se apenas fosse
E se deixou levar como se fosse ébrio
E se condoeu como se sóbrio fosse

José partiu como só parte o vento
E acenou como se tempo fosse
Depois voltou como quem nunca veio
Depois ficou como se não mais fosse

José que andou como se fosse homem
José que olhou como se fosse cego
José que partiu como só parte o vento
Olhou-se inteiro como quem não mais era
Jogou-se longe para que não mais fosse

José que tanto fez como se apenas fosse
José nunca foi, José foi-se.

20.11.06

Sonho

Jogo-me na cama. Não fecho os olhos, mas durmo.

Sonho.

Eu e você na noite escura. Ausência de cenário. Uma estrada perigosa. Não há estrelas, não há lua, nem mesmo o céu há. Espero durante horas o sinal ficar vermelho para que eu possa atravessar com segurança a avenida que me separa do futuro. Tenho pressa. Tenho sede. Tenho fome. E só. Porque ter nem sempre é necessário. Ainda mais quando o que mais se deseja é ser. Marco o ritmo dos meus pensamentos inquietantes com os pés. Mas permaneço com eles fincados no meio fio. Estabeleço pequena trégua ao compasso de idéias para considerar: meio fio. Por que meio? E me questiono o que me faz ficar ali parada num fio que nem sequer está inteiro. Desisto de esperar o avermelhar do sinal imprevisível. Decido arriscar. Mesmo sem saber direito o que arrisco. Desço do tal fio que não é todo, é apenas parte. Meu corpo põe-se a caminhar para o outro lado com a coragem controversa de quem não sabe o que faz. Eu apenas o acompanho. Você não. Já não sei mais onde você está. Fico no meio da estrada sozinha por um instante. No outro, você reaparece. E surge com feições que não são mais suas. Veloz, você vem em minha direção e me acerta. Veloz, você vem e me atropela. Joga o meu corpo inteiro no chão. Eu ainda pessoa, você agora caminhão.

Acordo. Penso que morri. Mas não. Foi só um sonho ruim. A realidade é outra. Procuro os teus braços e neles me salvo. Eu ainda amor, você também.

18.11.06

Acontece...

Acontece que hoje não há inspiração. Simples assim, como tudo deveria ser: não há. Debruço-me inteira sobre a folha de papel e não me vejo nela. Tenho na ponta da língua, na ponta dos dedos, na ponta da corda bamba em que me (des)equilibro muitas palavras. Umas belas, outras nem tanto. Umas feitas de rosas frescas e brancas, outras apenas cactos. Mas todas soltas demais para fazerem sentido algum. Todas com a terrível limitação de ser apenas o que são: palavras.

Acontece que não. Não há inspiração. Não há porque hoje não tenho nada que me faça querer olhar para fora de mim. Ou melhor, tenho tanto em cada um dos meus cantos e dos meus jarndins internos, que não encontro espaço para encaixar-me aqui. Há tanto em mim que já não me detenho a apenas uma forma de existir. Ou apenas: há tanto em mim que já não me detenho. Simples assim, como nunca deveria ter deixado de ser. Como nunca mais esquecerei que é.

Debruço-me, então, não mais sobre a folha, mas sobre mim mesma. E, assim como antes, debruço-me inteira. Penso em escrever. Mas não. Hoje, definitivamente, não. Hoje é o dia em que continuo a não ter inspiração. Tenho apenas urgência. Tenho apenas Vida. Tenho tudo: tenho a urgência da Vida. Para que mais?

15.11.06

Homenagem a Jorge


Jorge da Capadócia (Composição: Jorge Ben)

Jorge sentou praça
Na cavalaria
E eu estou feliz porque eu também
Sou da sua companhia
Eu estou vestida com as roupas
E as armas de Jorge
Para que meus inimigos tenham pés
E não me alcancem
Para que meus inimigos tenham mãos
E não me toquem
Para que meus inimigos tenham olhos
E não me vejam
E nem mesmo um pensamento
Eles possam ter para me fazerem mal
Porque eu estou vestida com as roupas
E as armas de Jorge

Salve Jorge
Salve Jorge
Salve Jorge

Armas de fogo
O meu corpo não alcançarão
Facas e espadas se quebrem
Sem o meu corpo tocar
Cordas e correntes arrebentem
Sem o meu corpo amarrar
Porque eu estou vestida com as roupas
E as armas de Jorge.

Salve Jorge... salve Jorge!

13.11.06

Rumo errado

Porque eu gosto de lutar
E você se faz de vítima

Porque eu gosto de seguir
E você finge que caminha

Porque eu gosto de verdades
E você se apóia em mentiras

Porque eu gosto de ter amigos
E você coleciona cúmplices

Porque eu gosto de sonhar
E você sempre delira

Porque eu gosto de jogar com as palavras
E você com as pessoas.

E quanto mais achar que pode ganhar, mais estará perdendo.

Perdendo tempo
Perdendo o rumo
Perdendo a chance

E finalmente: perdendo-se de si mesmo. Para nunca, nunca mais se encontrar.

8.11.06

Matemática irracional

Três amigos: dois homens, uma mulher.
Três formas de sentir.
Dois caminhos que se abrem.
Uma escolha.
Uma renúncia?

Três amigos divididos em dois casais.
Um de fachada: o homem e a mulher.
Um apaixonado: os dois homens.
Uma farsa.
Muitas mentiras.

Restou, portanto:

Três amizades abaladas.
Um rompimento.
Um casal de homens em crise.
Uma quase amiga do casal.

Porque mesmo quando tentou somar
Ela sempre soube que quem destoava era ela.
Ela sempre soube que quem sobrava era ela.
Mesmo quando optou por sentir, mas não acreditar.

7.11.06

Da série: palavras alheias, pensamentos meus

"Sentir é como descobrir, é saber como é sem nem ter tocado antes, é ter certeza do inconstante, é não racionalizar. Quando nada mais houver debaixo de seus pés, e quando não souber mais qual a diferença entre céu e terra, branco e preto, pesado e leve, assim ou assado, aí estará sentindo". (Caefher)


"A esperança é um exercício de vida. Os sonhos são seu instrumento". (Henri)


"Quem cultiva um jardim receberá flores um dia. Pode até demorar, mas isso não muda a natureza das coisas". (Pedro Ribeiro)


"Porque a vida, muitas vezes, é somente um grande verão com chuvas. Refiro-me, pois, a todas essas coisas incríveis e absurdamente simples, compreende? Essa simplicidade que choca de tão crua". (Andrea Marinho)

4.11.06

E assim foi. E assim...foi-se

Ele entrou, correu os olhos por todo o bar e os fixou em mim. Lançou-me um sorriso cínico e banal e - ainda sorrindo - ocupou a cadeira vazia ao meu lado.

_ Posso te pagar uma bebida?
_ Não, obrigada. Eu não bebo.
_ Por quê? Você tem problemas com o álcool?

Deixei a pergunta cretina sem resposta e ele, animadíssimo consigo mesmo, continuou:

_ Hoje vou te fazer quebrar a rotina: você vai beber.

Mal sabia ele que dar-lhe mais do que um segundo de atenção já significava não só quebrar a rotina, mas estraçalhá-la em mil pedaços desiguais.

Por que ele não vai embora? Por que eu não vou embora?

_ Eu preferia ficar sozinha, se você não se importar.
_ Eu me importo.

Parei por um instante. Fazia tempo que eu não ouvia aquilo. Eu- me- im-por-to, repeti devagarinho. Se eu ainda tivesse alguma emoção para oferecer, juro que quase me comoveria.

Deixei-o ficar, mesmo sabendo que eu não estava ali. Mesmo sabendo que ele também não estava. O garçom aproximou-se de nossa mesa vazia.

_ Veja: é a sua bebida.

Mal sabia ele que tantos são os que tentam matar a minha sede. E eu? Eu tenho apenas fome. Nem muita nem pouca, mas fome. Será que ninguém entende a diferença?

_ Experimenta. Vai ver que é bom.

Experimentei. Amargo e seco, como tanta gente que eu conheço. Desceu queimando a garganta. Era quente. Mas não, não era bom.

_ Gostou?

Balancei a cabeça em sinal de afirmação só para não decepcioná-lo. Mania infeliz de querer agradar a todo mundo.

_ O que você faz aqui?

Mentalmente, fiz coro à sua pergunta: o que faço aqui, o que faço aqui, o que faço?

_ Vim ver gente.
_ E está satisfeita com o que vê?

Olhei para o lado e...

_ Não. Mas a chuva que cai lá fora está inundando tudo, achei por bem me resguardar aqui.
_ Tem medo de chuva?
_ Nem sempre. Mas chuvas como a de hoje me fazem pensar que vou me molhar e nunca, nunca mais secar. Já teve essa impressão?

Claro que não. Ele não era do tipo que se permitia impressionar-se.

_ Deixa de bobagem, vem comigo.

Saímos do bar e fomos para a chuva. Não havia música, mas havia a vontade de dançar. Dançamos. Ou melhor, movimentamos os nossos corpos abraçados. Acho que ele não sabia dançar. Eu sabia, mas não com ele.

Em alguma nota musical que não tocava, ele invadiu com a língua o território quente - e nada neutro - da minha boca. Foi estranho, mas ainda assim eu quis mais. Aquilo era quase bom. Melhor do que a bebida amarga e seca, certamente.

Por um instante pensei em como seria invadir com a minha marca a história daquele homem. Mas não. Eu era apenas uma desconhecida. Ele, apenas um estranho.

A música que não tocava continou a não tocar. Nós que nunca a escutamos, continuamos a não escutar. E a noite acabou.

Antes ela do que eu.